sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Festa da Padroeira



                Fogos de artifício. Castiçais de ouro. Rosas brancas já fora de seus jardins. Veludo. Hóstias, vinho e incenso prontos. Eis o cenário de mais uma missa. Mas não é uma missa qualquer, é dia da virgem protetora, é festa no meu interior.
                Bem pertinho da segunda chamada do sino na catedral, o padre chega dirigindo seu sedã prata. As beatas andam léguas, umas com flores e terços nas mãos; outras, mais íntimas do vigário, trazem envelopes, estatísticas e dinheiro. A festa coincide com os primeiros dias do mês, é tempo de arrecadar os dez por cento dos fiéis. Aqui no interior o pagamento do dízimo é coisa séria, é indicativo de status social e ganha as vertentes mais excludentes que se possa imaginar. Há uma celebração toda especial dedicada àqueles que pagam. Se você paga o dízimo, participa de sorteios durante a missa, de bingos ao término dela, é mencionado, chamado pelo nome e agraciado com a simpatia indiscutível do padre que conhece bem seus clientes, quer dizer, suas ovelhas. Há uma campanha tão ferrenha em prol da adesão de mais pessoas ao hábito de doar uma quantia fixa à igreja todos os meses, que nem as crianças escapam: dez por cento de vossas mesadas e vinde a mim as criancinhas.
                Chega a noite. Sete horas em ponto. E sai da igreja o cortejo em procissão pelas ruas da cidade. À frente, logo depois do crucifixo, a autoridade religiosa com as mãos postas em gesto de serenidade e oração, nas laterais crianças batendo palmas, todos vestidos de vermelho e branco. Logo em seguida os idosos, a banda marcial entoando ave marias e as pessoas comuns alternando o esforço de carregar a imagem da santa.
                Do lado de cá, o carro de som se prepara, as cadeiras já estão postas nas ruas. É missa campal. Depois de voltas na cidade e de muitos fogos enfeitando o céu, a missa segue com pregações e louvores. Ao fim, o anúncio entusiasmado do padre aos queridos dizimistas, veja bem, entre tantos que assistem a missa, a novidade é para os di-zi-mis-tas. Há ali cinco valiosos prêmios, há inclusive um fogão de seis bocas que será sorteado como prêmio no bingo da padroeira.
                Enquanto isso, do outro lado da rua há quem chore a falta de gás no botijão, há quem clame aos céus auxilio na falta do que comer, isso já nem é novidade. Do lado de cá, palmas e vivas de hipocrisia. No meio de tudo, a dona da festa que esculpida e guardada num oratório de vidro, observa indiferente o que acontece ao seu redor. Talvez acima haja algo mais.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Anacronismo


           O ônibus das cinco horas seguia rumo ao interior cheio de jovens. Uns voltando da escola, outros tantos voltando do trabalho. E cada um submerso em seu mundo. Entre eles, na segunda poltrona, havia um senhor que se destacava: usava um chapéu de massa com uma peninha vermelha assanhada na lateral, tinha a roupa desgastada, um rosto cansado por trás da barba por fazer e um brilho lacrimal nos olhos. Falava. Falava muito com o desconhecido que sentara por acaso do seu lado. Falava, na verdade, como que estivesse palestrando para uma platéia ansiosa por ouvi-lo. E, querendo ou não, todos que estavam ali eram espectadores de seu discurso, ora rechaçado, ora aplaudido, no silêncio íntimo de cada um.
            Mesmo as adolescentes sentadas mais ao fundo do ônibus, apesar de estarem com o celular ligado ao som do “trepa-trepa” hit do momento, podiam ouvir aquele velho e sorrir de sua conversa sobre tempos de fartura de água limpa no riacho; dos potes que carregou cheio delas; do hábito de entrar pelos corredores da casa, caso houvesse alguma visita em conversa com a família na sala e até da submissão feminina imposta pela sociedade patriarcal.
            - Se algum da gente beijasse uma moça ela levava uma surra do pai. Naquele tempo existia o respeito, sabe como é, né?
             De tudo que o velho falava, eu podia sentir pelo seu timbre, mesmo distante de seu olhar, o pesar de se sentir um anacronismo. Falava da juventude e dos tempos modernos com aspereza, com o desprezo de quem aprendeu diferente.  Ao fim sentenciou com subjetividade disfarçada, em tom de melancolia:
            - Um filho sai de sua casa e vai pra longe pra ter a desculpa de não voltar, ele tem nojo de sentar na sua mesa.
            Fez-se o silêncio.
      

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Diz-me como respondeu ao bom dia e eu te direi o médico que é.


Nessas idas e vindas por entre corredores engarrafados de doentes já presenciei de tudo um pouco e não demorei tanto para perceber que só se conhece verdadeiramente o médico quando se está numa fila, preferencialmente do SUS, para ser atendido. Sabem aquele médico que as boas línguas dizem ser “o cara”? Pois bem, use moderadamente a sua língua e só diga isso depois de vê-lo atendendo pacientes conveniados com a rede pública no mesmo ambiente em que atende os pagantes diretos.  É de se lastimar ver essa  "gente-divindade" entre os que tem em comum a necessidade de um atendimento médico, no entanto, se diferem pela medida do dinheiro que levam no bolso.

Infelizmente, nestes casos o descaso pode ser constatado desde o princípio. Funciona a máxima: Diz-me como respondeu ao bom dia e eu te direi o médico que é. Tudo bem, o cara do jaleco não precisa ser o miss simpatia e esbanjar sorrisos, mas, convenhamos que é uma fugida gritante da ética trocar a palavrinha mágica “bom dia” por “você é particular?” Como assim “você é particular”? Ora, pessoa pública é que não sou. Enfrentar o caos que é a saúde pública para se deparar com pessoas assim é praticamente encontrar a corda no fim do túnel, é oferecer mais doença a quem quer ali a cura.
A discriminação por aqui não é produto exclusivo de uma só pessoa não, é até uma prática muito comum. Há nas redondezas, por exemplo, um pronto socorro que nunca está pronto a prestar um socorro decente (isso se você não tem dinheiro). Há médicos mais frios que paredes, doutores Portas, doutores Muros. Lá há um lugarzinho todo especial dedicado à clientela da rede pública: um porão - logo abaixo de onde se atendem aqueles que apresentam a folha com estampa “PAGO” carimbada em letras garrafais.
No escuro, lugar das Marias das Dores e de seus Josés, pode-se ver, depois de horas de espera, surgir o tal médico descendo imponente a rampa que o leva ao fundo do porão para se deparar com dezenas de braços, de pernas e dedos – ele deve pensar que as pessoas não passam de membros isolados- aliás, é difícil imaginar o que um médico que atende cinco pessoas de uma vez só e sequer olha para as suas caras pensa a respeito dos seres humanos.
O fato é que: quantos mancam hoje em dia, quantos perderam  seus dedos, quantos entortaram um braço, quiçá até ficaram sem ele, por culpa do tal médico? Não há como saber. Mas, há como saber sem sequer carregar bancos de universidades nas costas, o tipo de doutor que precisa de uma cirurgia inexistente na medicina, cirurgia de caráter, de consciência, de profissionalismo. Formar-se médico, depois de anos de estudo, de residência médica e de um fecho glamuroso com direito à juramento hipocrático e tudo  é muito fácil; encher a boca para dizer que é médico e que pode salvar vidas, mais fácil ainda; mas honrar as horas de estudo e a função a que se dispôs, é coisa para poucos, para os poucos que se sabem humanos e tanto quanto os que deles precisam, fadados ao fim.

Amizade em tempos modernos


Eu não tenho um milhão de amigos, e, francamente, nem quero ter. Nesses tempos de miguxismos exacerbado, eu cheguei à conclusão de que está mais em paz aquele que corre para léguas de distância da falsidade propagada em convites, comentários e frases públicas de eu te amos vazios.
Há mais e mais gente que se intitule “amigo”, porém, há também mais gente que falhe em sê-lo. Com tantos amigos, centenas e centenas quantificadas pelas redes sociais, o point de encontro do momento, fica difícil escolher um, unzinho que seja para ser simplesmente companheiro. A barra de rolagem pode descer e subir quinhentas vezes, criando um efeito de cascata com aqueles rostos (devidamente photoshopados em suas melhores poses) que, de algum modo, já estiveram presentes em sua vida, mesmo que tenha sido para simplesmente escrever: “Add”. Eles sobem e descem e você se pergunta qual o sentido daquilo ali. Você “reviu” aquela pessoa que assistiu Jaspion com você, a que colou da sua prova na quinta série, a que te deu uma rasteira no meio do pátio da escola e até a que quis o seu namorado para ela. Mas e daí? A maioria te reencontra para saber se você se casou, se ficou rico ou empobreceu de vez, se é bem sucedido, o que faz e até o que não faz, onde mora, em quais farras você pode estar, a quantas pessoas sua vida interessa e ponto.
Em tempos de amizade vazia, sinto falta do companheirismo de outras fases, de coisas simples, do riso e do abraço largo, do afeto, da mão que acolhe, da certeza de poder contar com alguém. Talvez, partindo-se do modelo de amizade que anseio, seja falta dos amigos da minha mente, todos eles imaginários.
Pois é, eu não sou popular, eu não tenho um milhão de amigos e eu devo ser muito insuportável, porque no meio de uns poucos amigos contados eu conto menos ainda quem seja companheiro.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A dureza da noite no sofá

Dora Lira


Coisinha difícil é conviver, é viver com, por mais que a gente se esforce fale o que nos incomoda e até onde vai o direito do outro rente a nossa sociedade conjugal, sempre está ele ali, insistindo em nos incomodar com manias mais manjadas e mais antigas que as receitinhas de remédio caseiro da minha avó.  E não adianta esbravejar ao extremo ou achar que vai passar e que de um dia para o outro nosso querido consorte vai mudar e se moldar aos nossos caprichos. Diante daquele arranca rabo pelos motivos mais banais que sempre crescem e viram um monstro, o jeito é relutar contra instintos mais animalescos que nos mandam trucidar o outro... Calma, não é por ai!
Eis que num desses dias de inferno conjugal eu descobri uma solução. Irritadíssima com o meu maridinho, descobri o tormento que o fiz passar em várias noites, algumas seguidas, inclusive, de sono no sofá. Optei por abandonar nossa cama box king para me contentar com aquele móvel vermelho do canto da sala. Sim, fui abraçar as almofadas e “dormir” no sofá, pois se eu visse meu esposo perto de mim por mais dez minutos eu poderia ser em breve encarcerada por umas duas décadas (exagero meu, duvido que com as tais progressões de pena alguém fique tanto tempo assim preso no Brasil).
Mas, voltemos à idéia magnífica... Pensei nesses casais modernos que fazem suas trouxinhas, decidem fazer um “teste drive” e ir morar juntos por tempo indeterminado, acontece que no tempo indefinido e durante a primeira briguinha besta, eles descobrem que para serem companheiros reconhecidos na tal união estável - coisa moderna essa, no tempo que eu casei não existia isso – eles nem precisam morar debaixo do mesmo teto. Embora eles adorem o fiel cumprimento de certos deveres conjugais, um não suporta mesmo a cara do outro. Então, para que morar junto todos os dias e correr o risco de amanhecer com torcicolo pela dureza da noite no sofá?
Espere ai, não imagine, leitor apressado, que eu tenha tido a petulância de chegar para o meu maridinho querido com a proposta de morarmos em lares separados. Isso não! Mas descobri meios de economizar com terapeutas e com remédios para dores. Hoje em dia aqui em casa é assim: a gente briga, torce o nariz, mas ninguém vai dormir no sofá. E sabe por quê? Depois de muita conversa e umas mudanças, a nossa casa perdeu uma dispensa e ganhou mais um quarto. Um quarto bicolor, bidecorado, bipovoado, birrefugiário, um quarto uno de dois universos. Cada vez que aquele marrento me provoca ou que o teto dá sinais de que vai desabar na minha cabeça, estou eu lá, firme e forte entre meus livros, telas, CDs e DVDs. Tranqüila, sabendo que depois de uma noite bem dormida, vai ser facinho encarar mais uma DR -mania moderna masculina essa de discutir a relação- e ainda há quem abra a boca para dizer que isso é “coisa de mulher”. 
* Na verdade, a autora não é casada, recorreu à personagem como meio de através deste recurso estilístico mostrar um ponto de vista feminino numa relação conjugal.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Extra! Extra! A teia


Dora Lira
É fato que o boato está na capa da revista. Inclusive, já está marcada a entrevista. De boca em boca a notícia vai veloz feito um sopapo. Pois é, quem tem boca vaia Roma e vaia a vida alheia que, na verdade, quer para si. De um canto a outro a notícia ultrapassa as linhas limítrofes, as cercanias da cidade. As linhas telefônicas congestionam-se e todos soltam “ohs”, “ais” e “uis” interrogatórios, inquisitórios, sentenciatórios. Todos santos. Tolos e sonsos.
Os Judas são escolhidos. E a diversão é certa.  Malham, malham, até cansar. Ou melhor, malham, malham e, em tortura verbal, dilaceram a vida dos escolhidos, até outros aparecerem com escândalos maiores, com escândalos ou desgraças que rendam fofocas mais interessantes. E assim a teia de falsidade segue, fio a fio. Entre as aranhas o veneno e, antes do “bom dia”, o “como você está?”. Não para saber se, de fato, a outra vai bem, ao contrário, para saber o que vai mal, simplesmente por querer que assim seja. Que as desgraças da vida alheia explodam, mas que elas ouçam ao menos o eco. Há que se ter o que falar. Quando a própria vida é assim tão insignificante, é preciso mesmo viver a dos outros.